Quem tem medo do Desfazendo Gênero?
Como um encontro de cultura queer sacudiu a “capital do forró”, no Nordeste. Houve ameaças — toscas, como sempre. E em vão: decidiu-se aumentar a dose, em 2019…
Por Berenice Bento, Leandro Colling e Jussara Carneiro Costa
Por Berenice Bento, Leandro Colling e Jussara Carneiro Costa
Campina Grande (Paraíba) transformou-se, por quatro dias, da cidade do forró na cidade queer do Brasil. Entre 10 e 13 de outubro, sediou a terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero. A primeira edição ocorreu em Natal, em 2013. A segunda em Salvador, quando, pela primeira vez, a filósofa Judith Butler veio ao Brasil. E agora, foi a vez de Campina Grande. Pessoas pesquisadoras, artistas, ativistas, povos de santo e indígenas estiveram juntos em mesas-redondas, performances, tendas de vivências, grupos de trabalho. Por dois dias também tivemos a alegria de conhecer parte do rico e plural cinema palestino.
O Desfazendo Gênero foi pensado como espaço de questionamento das identidades fixas. Mais do que nos perguntarmos “o que é uma mulher” e “o que é um homem”, queremos entender os interesses que afirmam que nossos cromossomos e hormônios revelam quem nós somos. Nossos desejos não cabem em classificações biológicas. O Desfazendo Gênero é um espaço de crítica, reflexão e arte. Ali, ninguém silencia ninguém. As tentativas, venham e onde vieram, serão combatidas.
Nesta edição, ficou evidente o quanto acumulamos de práticas encarnadas de decolonidades. A multiplicidade de saberes reunidos no mesmo espaço nos proporcionou varias aulas sobre como a decolonidade dos saberes não pode ser uma teoria, mas uma prática.
Talvez seja exatamente o encontro das potências mobilizadas pelo evento que desencadeia os ataques fascistas adensados desde a segunda edição. Nesta terceira, as agressões na página do evento iniciaram desde o primeiro encontro de preparação – março de 2016 – e aumentaram conforme se aproximava outubro de 2017. O ponto alto aconteceu após a performance Trajeto com beterrabas, por meio da qual a artivista Ana Reis denunciou os estupros e o feminicídio. Após a publicação de fragmentos da performance em nossa página no facebook, os ataques intensificaram-se. Após uma enxurrada de denúncias, oriundas, sobretudo, de pessoas localizadas no “Sul” do país, a página recebeu como sanção pela divulgação de conteúdo considerado “ofensivo” (fotografias e vídeos da performance Trajeto com Beterrabas), a retirada do conteúdo vetado e a suspensão temporária de novas postagens, medida em alguns casos estendida a pessoas que administram a página.
É preciso enfatizar que o desejo de silenciamento de pesquisadores/ativistas que fazem o Desfazendo Gênero não constitui um fato isolado. Ao contrário, está inserido em um contexto histórico de intensa luta política em que setores, em uma versão contemporânea da TFP (Tradição, Família e Propriedade) tentam nos silenciar. Os neoTFPistas são semeadores do medo, do pânico e do ódio.
O Desfazendo Gênero expõe as cumplicidades, tácitas ou escancaradas, entre aquele/as que nos atacam escudado/as sob noções de moral e ética vagas e obtusas, o adensamento da violência e a perpetração da cultura política marcada pela corrupção e injustiça que envergonham esse país. Os ataques ao evento não começaram nesta edição. Em Salvador, em 2015, nossa página também foi derrubada e os/as organizadores/as perseguidos/as. E, outra vez, foi a performance de outro artista, Miro Spinelli, com sua potente Gordura Trans, que deixou os neoTFPistas em fúria. Nossa resposta? Organizamos com alegria vital a terceira edição. E assim seguiremos.
Ao longo destas três edições, o Desfazendo Gênero reuniu milhares de pesquisadores/as, atividades, artistas. Foram centenas de trabalhos apresentados, dezenas de grupos de trabalho, livros publicados, incontáveis abraços de gente que ali também encontra um lugar de afeto. O Desfazendo Gênero não é um evento, é uma transfusão de sangue. Seguiremos na resistência. Resistir e avançar nos torna vivos/as. Diremos não aos fundamentalistas da política e ao fascismo de plantão. Com o nosso não construímos uma universidade com mais beleza, vida e arte.
Que venha a 4ª edição. Em 2019 ficaremos ainda mais bonitas, vivas e alegres com a energia de Pernambuco!
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