Israel e o roubo da infância palestina
A ativista palestina Ahed Tamimi, aos 11 anos, Cisjordânia, 2012 (Foto: Haim Schwarczenberg)
“Ele ultrapassou todos os limites!”, frases como esta foram repetidas mundo afora diante da decisão do presidente estadunidense Donald Trump de separar os filhos dos pais que tentaram entrar nos Estados Unidos. Assistimos a mobilizações em todas as partes do mundo contra tal decisão que por dias foi a principal manchete em toda a imprensa internacional. Jornalistas se emocionaram ao ver as cenas de crianças enjauladas, deitadas no chão e cobertas com folhas gigantes de papel alumínio. O horror, aquilo que desloca nosso pensamento para o impensável, era transmitido em rede mundial. A reação globalizada obrigou Trump a rever parcialmente as medidas.
Certamente, não é necessário argumentar em relação a por que prisões de crianças, separadas das famílias produzem perplexidade. Ao dizer “criança” acionamos um conjunto de valores morais vinculados às noções de proteção. As comparações com o nazismo foram amplamente utilizadas. Imagens de crianças alemãs, presas nos campos de concentração e separadas da família pelos nazistas, também voltaram em profusão naquelas semanas.
Seria possível imaginar outro lugar (que não fosse nos Estados Unidos e na Alemanha nazista) onde crianças são sistematicamente separadas da família? Sim, este lugar existe. Israel prende diariamente crianças palestinas.
Este artigo poderia ser sobre as diversas técnicas de matar as crianças palestinas implementadas por Israel. Talvez sobre o pequeno Nassir al-Mosabeh, de 12 anos, executado pelo exército de Israel em 28 de setembro quando participava de um protesto em Gaza. Ou ainda, analisar os dados da política intencional de mutilação das crianças e jovens praticadas por Israel. No cenário de destruição e morte contra o povo palestino, neste dia 12 de outubro, priorizaremos as crianças palestinas encarceradas.
Por que elas são presas?
O sono do povo palestino é diferente. Ele sabe que a qualquer hora da madrugada, entre as duas e quatro horas da manhã, sua casa pode ser invadida por soldados de Israel fortemente armados. Não há aviso. Ninguém pede licença. Arromba-se a porta e, aos gritos, invadem a casa. Na noite de 19 de dezembro de 2017 eles foram prender Ahed Tamimi. Desde que nasceu, ela já tinha visto tantas vezes a mesma cena. Todos os membros de sua família, na pequena Nabi Salah (Cisjordânia) já haviam sido (ou estavam) presos. As marcas da dominação colonial israelense estão em todos os lugares de seu povoado: no corpo de sua mãe, que não caminha bem por te sido atingida por uma bala na perna; na cabeça do seu primo Mohammaed Tamini, que perdeu parte do cérebro horas antes da sua prisão. Naquela noite de inverno eles queriam Ahed Tamimi. Iniciou-se para ela o mesmo calvário já percorrido por tantas outras crianças palestinas.
De acordo com relatórios internacionais, atualmente, são 5.781 presos políticos palestinos espalhados nas inúmeras prisões israelenses. Deste total, 456 estão em detenção administrativa (presos sem uma acusação formal); 65 são mulheres e 270 crianças, sendo 50 abaixo dos 16 anos. Conforme estipulado pela Ordem Militar 1651, crianças palestinas dos 12 aos 13 anos estão sujeitas a penas de seis meses; dos 14 aos 15 anos, 12 meses na prisão. Adolescentes na faixa entre 16 e 17 anos estão sujeitos às mesmas sentenças dos adultos, embora no sistema penal israelense a maioridade penal ocorra aos 18 anos.
Local da prisão e acusação
As crianças são presas em duas situações: quando estão em atos públicos ou em casa no meio da noite. A acusação costumeira é de que estavam jogando pedras no exército colonial israelense. Jogar pedra é um ato criminalizado através da Ordem Militar 1651. As crianças ficam, em média, de dois a dez meses presas. Além das manifestações, as casas das crianças são os outros lugares onde acontecem as prisões.
Na prisão
As crianças são levadas para a prisão sozinhas. Nenhum parente ou pessoa próxima pode acompanhá-las. Chegando lá, iniciam-se os interrogatórios e as torturas físicas e psicológicas. Abusos sexuais acontecem com frequência.
Ahmad H. Yassin, 16 anos, ficou preso por cinco meses. Ele nos conta: “Colocaram-me em um quarto que não tinha câmara, o que é contra a lei. Onze oficiais me batiam. Eles seguiam me perguntando coisas que eu não fiz. Eles não me deixaram usar o banheiro nem comer. E me humilharam. Enquanto estava sendo interrogado, eu pedi aos interrogadores para permitir que minha família estivesse presente ou um advogado. Ele disse-me que o oficial ordenou que ninguém poderia estar comigo. Eu disse-lhe que sou menor, mas eles responderam que estas são as instruções oficiais e eles tinham que segui-las.”
Histórias iguais às de Ahmad se repetem. Os interrogatórios são todos feitos sem a presença de parentes ou qualquer proteção legal. De forma geral, os parentes precisam atravessar barreiras militares (checkpoints) para ir até as prisões (a exemplo de Ahed Tamimi que foi levada à prisão de Hasharon, em Israel), mas quando chegam nessas barreiras são impedidos de seguir adiante pelo exército porque não têm autorização oficial do Estado de Israel para atravessar. Geralmente, apenas no dia do julgamento, a família pode ver o filho, mas não pode tocá-lo. Uma mãe, depois de um longo tempo sem ver sua frágil filha entra na sala de audiência e aos prantos e diz: “Ela é apenas uma criança”.
As alegadas confissões ou outras declarações incriminatórias de crianças detidas são documentadas em um idioma que elas não entendem, o hebraico, e não há como verificar se os documentos foram traduzidos com precisão para as crianças antes de elas os assinarem. Segundo a ONG DCI – Palestina, a cada quatro crianças presas, três sofrem algum tipo de violência física durante a prisão, transporte ou dentro de bases militares.
Israel é o único país do mundo que processa crianças em cortes militares, ferindo acordos e leis internacionais por ele mesmo assinado. Viola, assim, sistematicamente as Leis Internacionais. Estima-se que, desde o ano 2000, em torno de 10 mil crianças e adolescentes já tenham sido detidas apenas na Cisjordânia, incluindo aquelas com idade inferior a seis anos.
Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, que Israel ratificou, a privação de liberdade de crianças deve ser o último recurso e deve ser acionado apenas pelo menor período apropriado de tempo. A Quarta Convenção de Genebra proíbe a deportação de pessoas protegidas de um território ocupado para o território do poder ocupante ou de qualquer outro país, independentemente do motivo, o que acontece sistematicamente com as crianças que são levadas para prisões longe dos pais.
O Relator Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, Richard Falk, vem denunciando há alguns anos que as prisões e “o uso por Israel de confinamento solitário contra crianças viola flagrantemente os padrões internacionais de direitos humanos”. E diz mais: “As condições carcerárias são geralmente deploráveis, obrigando as crianças a dormirem no chão ou em camas de concreto em celas sem janelas”. A manutenção de crianças nestas condições viola flagrantemente os padrões internacionais de direitos humanos. Em Gaza, lhes são negadas as visitas de parentes e advogados, isolando as crianças e permitindo maus-tratos durante os interrogatórios. Elas são confinadas, em média, de 1 a 24 dias.
O UNICEF publicou relatório em 2013 no qual conclui que os maus-tratos de crianças palestinas no sistema de detenção militar israelense é generalizado, sistemático e institucionalizado.
Levantamento realizado pela ONG DCI – Palestine mostra que 2016 foi o ano com mais mortes de crianças palestinas por forças israelenses da última década: 32 mortos na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Relatório da ONU sobre a agressão de Israel a Gaza no ano 2014 concluiu que os ataques aéreos mataram pelo menos uma criança por hora no período que durou o bombardeio.
Uma das características do colonizador é esvaziar o outro, o colonizado, de qualquer sinal de humanidade. Quando Israel não reconhece a infância nos corpos das crianças que prende e tortura, está nos dizendo que, qualquer palestino, já nasce um criminoso. Por esta lógica, não se trata de encarcerar uma criança. As fases etárias da vida (infância, adolescência, juventude e velhice) são atributos humanos. Para eles, os palestinos não são humanos. Assim, de nada adianta clamar pela aplicação de acordos internacionais que protegem a fase mais vulnerável da vida humana, a infância. Israel dirá: “Jogaram pedras nos nossos soldados. Devem ser punidos como criminosos de guerra. Não são crianças. São palestinos”.
Onde habita a esperança do futuro? Na infância. Ao roubar a infância das crianças palestinas, Israel é coerente com sua política de despossessão continuada do povo palestino iniciada em 1948. Mas por que houve um engajamos globalizado para deter Trump em sua política de aprisionamento das crianças e não há a mesma reação internacional em relação a Israel, que já vem encarcerando as crianças palestinas há décadas? Por que os países, diante da imoralidade que é tratar sistematicamente crianças como criminosas de guerra, não aderem ao boicote econômico a Israel? A política oficial segue de costas para o sofrimento do povo palestino.
Neste 12 de outubro, temos certeza de que o presente que as crianças palestinas querem é a paz. Um país livre da dominação colonial israelense. Este presente está a caminho e passa pela adesão internacional ao movimento pacífico que chama pelo boicote, desinvestimento e sanções (BDS) a Israel. Não demorará muito para as crianças palestinas terem o direito de brincar como qualquer outra criança, de correrem livres pelas ruas de suas cidades, sem tanque de guerra, sem gás lacrimogênio, sem velórios diários. Eles também terão direito ao 12 de outubro.
Berenice Bento é professora do departamento de Sociologia da UnB
Sayid Marcos Tenório é diretor da CEBRAPAZ e secretário-geral do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal)