Quando o medo se transforma em ação politica

Quando o medo se transforma em ação política
Quarta-feira, 9 de Maio de 2018

Quando o medo se transforma em ação política


  • Entre os anos de 1965 e 1966, ruas de várias capitais brasileiras foram ocupadas por manifestações que estampavam em seus cartazes: “Em nome da tradição, família e propriedade” (TFP   Tradição, Família e Propriedade). Neste tripé, setores consideráveis da sociedade brasileira se organizaram e deram sustentação civil ao golpe militar. Atualmente, os discursos que defendem o direito exclusivo da família heterossexual existir e a defesa da propriedade privada como um valor superior à vida estão organizados em partidos políticos, no MBL e na Escola sem Partido.
Estes três níveis organizacionais das direitas não esgotam seus campos de atuação. Talvez sejam os mais visíveis, uma vez que estão na esfera pública disputando visões de mundo. Há, contudo, outras formas de atuação que passam pelo legislativo, mas não começam nem terminam nele: os mecanismos que os grandes empresários (da indústria/do agronegócio/do sistema financeiro) utilizam para retirar o máximo possível de recursos públicos, a exemplo do perdão das dívidas (renúncia fiscal). Cálculos da Unafisco – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – estimam que chegue a R$ 322 bilhões o que o governo deixará de arrecadar com programas de perdão ou renegociação de dívidas criados em 2017, por meio da edição de medidas provisórias (MPs).
Para se chegar à edição de uma medida provisória, inúmeras negociações são realizadas, mas elas não aparecem nas grandes manchetes da mídia. Tudo é feito na invisibilidade dos gabinetes ministeriais de Brasília, com forte assessoramento da tecnoburocracia estatal e de representantes de grandes empresários/banqueiros.  Este tipo de apropriação dos recursos nacionais acontece fora e dentro do Parlamento. Em algum momento, os/as parlamentares são chamados/as para dar seu aval a esta expropriação – não seria melhor chamá-la de “corrupção institucionalizada”? – dos recursos públicos.
A expressão política dos interesses da classe economicamente dominante está fragmentada em diversos partidos políticos; acredito, porém, que não se pode entender o nível político sem vinculá-lo a esta rede de tecnoburocratas espalhada nas estruturas do Estado. São eles que irão justificar tecnicamente medidas provisórias e outros dispositivos legais que garantem que a gestão de recursos esteja voltada para a manutenção das estratificações sociais que se caracterizam por níveis abissais de desigualdade social.
Quais seriam as relações entre os interesses dos setores da classe dominante e os que se estruturam a partir de discursos morais, os chamados neoconservadores?
Alguns interpretam a atuação desses setores organizados da direita – ou, nos termos de Richard Miskolci, dos “empreendedores morais” – como uma forma de escamotear os verdadeiros interesses que os movem: os econômicos. Outros preferem analisar a dimensão das moralidades sem fazer referência às possíveis conexões entre estes dois níveis (o econômico e o moral) e acabam recaindo em um tipo de discurso identitário que isola um dos elos daquilo que nomeio de sistema CGRS – Classe, Gênero, Raça e Sexualidade. Cito um exemplo, em uma conjuntura tão rica deles: no dia 17 de abril de 2016, várias deputadas declararam a plenos pulmões que votavam pela admissibilidade do impeachment da presidenta Dilma, justificando sua posição na defesa da família. Setores dos feminismos diziam que as mulheres parlamentares estavam atualizando em seus discursos o patriarcado – que tem como ponto alto de sua eficácia de dominação fazer com que as mulheres sejam agentes reprodutores da própria dominação.
Outros setores da esquerda, no entanto, não deram muita importância ao nível manifesto daquelas declarações de voto (pura perfumaria) porque, na verdade, o que se estava defendendo ali era uma posição de classe social.
Acredito, no entanto, que as duas perspectivas analíticas (que têm efeitos políticos concretos e singulares em termos táticos e estratégicos) pecam por não entender que as direitas – assim como as esquerdas – organizadas e, aqueles/aquelas que aderem aos seus discursos, não podem existir sem uma concepção de mundo que lhes forneça os valores que lhes conferem sentido. Esta concepção de mundo não é determinada pela dimensão econômica. Não é uma “falsa consciência”, ou seja, uma forma turba de ler o mundo ou de ler o mundo com a lente dos/das dominantes.
Ora, em nenhum momento durante os anos dos governos petistas os interesses da classe economicamente dominante foram ameaçados e, em alguns casos, os lucros foram ampliados, a exemplo do sistema financeiro. O direito inalienável à propriedade privada jamais foi questionado.
No momento em que a parlamentar vota pela retirada da Dilma, ela está operacionalizando o sistema CGRS. Daí, portanto, não ter nenhum sentido exigir algum tipo de coerência à sua atuação parlamentar a partir da categoria gênero. Ela atuou coerentemente. Qualquer uma das categorias que estrutura o sistema CGRS – quando isolada como variável determinante – tem pouco valor explicativo. Como é possível contar a história do capitalismo brasileiro sem evocar a raça? E quem gerava os seres que iriam alimentar o sistema escravocrata? A unidade política e econômica do Brasil, por séculos, não foi o Estado, mas a família. Assim, a relação entre propriedade privada e família, no caso brasileiro, é indissolúvel. E qual família? A heterossexual.
Se, conforme se sabe, os interesses econômicos da classe dominante não foram ameaçados, como se pode continuar analisando a conjuntura política a partir da determinação de um marcador social da diferença, ou seja, por interesses de classe?
Pela primeira vez na história do Brasil, o Estado, ao longo dos governos petistas, passou a pautar o debate sobre a necessidade de reparação histórica às pessoas negras, a formulação de um Plano Nacional de Combate à Homofobia e o crescente protagonismo dos ativismos trans/travesti no âmbito da luta por igualdade de gênero. Tanto as políticas públicas quanto os debates promovidos pelo governo federal padeciam de anemia política. Eram fracas. Lidamos com tempos políticos distintos. Nós, das esquerdas, tínhamos (temos) pressa. O executivo atuava lentamente, mas atuava, navegando no mar revolto das alianças políticas.  E as direitas queriam o tempo do passado, da tradição.
Os pactos para garantir a governabilidade tentavam fazer uma alquimia impossível: mistura água e azeite. Levou-se até o abismo a crença no pacto social. Como aceitar que o terreno simbólico máximo das elites intelectuais, as universidades públicas, fosse tomado por uma turba de gente negra? A luta de raças estourou nas salas de aula, nas redes sociais. Como aceitar que as bichas, as lésbicas, tenham direito a adentrar como membros legítimos à sagrada família? A luta dos gêneros e das sexualidades dissidentes ganhou vida, institucionalizou-se em dezenas de Núcleos de Pesquisa nas universidades públicas. E um novo termo passou a habitar a família das palavras abjetas das direitas: gênero. Embora houvesse certo consenso da importância da formulação de políticas públicas que pautavam temas inéditos, também se percebia o pouco alcance destas políticas. Fazíamos um trabalho de pressionar o executivo para avançar. Às vezes, no entanto, nos tornávamos Sísifos.
O que era mínimo para nós, pesquisadores/as e ativistas dos direitos humanos, para os/as conservadores/as, era inaceitável. Cenas de madames se recusando a sentar-se ao lado de uma pessoa negra em um avião, de estudantes que negavam o direito de uma mulher trans usar o banheiro feminino, da censura de exposições artísticas, tornaram-se rotineiras.
Na timidez da política dos direitos humanos dos governos petistas, acabamos descobrindo o quanto as elites intelectuais, de gênero, de raça e de classe estão dispostas a ceder para que haja transformações: nada.
Não querem ter apenas o direito à universidade pública. O usufruto deste direito só tem sentido se as pessoas negras e pobres não estiverem no mesmo espaço. Não estamos diante do ódio ao pobre – o chamado “ódio de classe” –, mas às pessoas negras, às feministas, às travestis, às lésbicas, às bichas, a toda e qualquer diferença que polua os espaços públicos.
O medo tem sido um recurso historicamente utilizado pelas direitas para produzir adesões. Nas disputas pelo poder político institucional, há outro dispositivo discursivo acionado pelas direitas: o da eficácia. No poder institucional exigem-se níveis de conhecimentos técnicos que apenas aqueles/as que estudaram possuem. Nada fascina mais o imaginário social do que a crença de que um empresário bem-sucedido irá colocar seus conhecimentos de gestão a serviço do Estado. Ou, ainda, quando os tecnoburocratas são convocados para explicar (o verbo é sempre “explicar”) que os dados da Previdência Social não fecham, sendo a Reforma o único caminho para nos salvar do precipício. A GloboNews tem sido um dos lugares privilegiados em transfigurar questões políticas em técnicas.
Assim, embora haja considerável fragmentação nos setores que operacionalizam o sistema CGRS, no sentido de manutenção de posições de poder – sejam elas referentes à classe social, ao gênero, à raça ou à sexualidade –, devemos perguntar: o que produziria a coesão deste sistema? É necessário ver o conteúdo dos seus discursos (nos termos de Michel Foucault), ou seja, o conjunto de enunciados que se apresentam como verdade, com força suficiente para assegurar sua reprodução. Sugiro que o medo – na dimensão dos valores morais –  e o discurso da eficiência – na esfera do Estado –  são duas possíveis estratégias discursivas acionadas pelas direitas que lhes asseguram, no âmbito da fragmentação, certa coesão.
Assim, para entender e enfrentar as direitas não basta produzir uma oposição entre ações universais (via classe social) e identidade. Acionando o sistema CGRS pode-se entender, por exemplo, por que as camadas sociais populares e periféricas, mesmo sem ter qualquer esperança de ascenderem socialmente, tomam para si o discurso antigênero. O medo de perder o poder de reproduzir as verdades que me constituem, e que agora me vejo na tarefa de fazê-lo ganhar vida nas vidas de meus/minhas filhos/as, produz desorganização nas famílias porque faz o micropoder se deslocar.
Como aceitar que uma professora afirme que temos que respeitar gays, lésbicas, travestis? Como suportar o questionamento de minha filha que se nega a fazer a tarefa doméstica porque o irmão também não faz?
A politização do privado produz níveis de instabilidade emocional vivenciados com angústia e medo. Nada é mais dramático do que a luta de valores no âmbito da família. Muitas vezes, é mediante a violência que se tenta silenciar as vozes dissonantes e se instaura uma crise ética profunda neste espaço. Estes sentimentos, vazios politicamente, são preenchidos de sentido por movimentos como a TFP, nos anos de 1960 e, atualmente, pela Escola sem Partido e pelo MBL.
Berenice Bento é Professora do Departamento de Sociologia  na Universidade de Brasília (UnB).

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