Simone de Beauvoir encontra-se com Lara Lincon
Seria muito interessante se, em todo o sistema educacional, o estudo sobre relações sociais de gênero fosse incorporado como um conteúdo obrigatório e que existisse um momento para se pensar questões como: Quais são os mecanismos pelos quais o “tornar-se mulher e homem” ganha vida? Como as instituições participam e elaboram o projeto social para as masculinidades e feminilidades? Existe um ato fundante que nos batiza e nos congela nos lugares generificados? É possível dar uma rasteira nas verdades que nos foram impostas sobre os gêneros e resignificá-los?
Parte considerável da história do feminismo se insere na luta de construção de novos sentidos para os gêneros e na afirmação de que nossos destinos não estão inscritos no corpo. Essa subversão é reatualizada todos os dias pelas existências das travestis, mulheres transexuais, homens transexuais e transgêneros. É de resistência que nos fala Lara Lincon Milanez Ricardo, uma das 278 transexuais e travestis que solicitou o uso do nome social no ENEM.
Enquanto os outros estudantes de sua sala estavam concentrados em suas redações, fazendo seus roteiros com ideias-chave, início, meio, Lara pediu licença ao fiscal e foi ao banheiro. Uma discussão se instaurou na porta do banheiro. Ela não poderia usar o banheiro feminino porque não era “mulher de verdade”, sentenciou o fiscal e garantidor da segregação urinária. A cena da proibição do fiscal insere-se em um marco mais amplo. Essa proibição é uma citação (Jacques Derrida, Limited Inc.) das normas de gênero (Judith Butler, Problemas de gênero) e o fiscal (ironia do nome) atuou como o representante da lei de gênero fundada no princípio de que não existe vida possível fora do dimorfismo. No maravilhoso mundo do binarismo dimórfico é tudo simples: diga-me que cromossomos tens e te direi quem és. Enfim, Lara não era mulher e ponto.
A negação da existência de Lara e de outras travestis que foram expostas à humilhação durante os exames do ENEM não teve a mesma repercussão que o tema da redação. Contraditoriamente, o que esses acontecimentos revelam é a luta de sujeitos em tornarem-se homens e mulheres mediante atos que negam a supremacia das genitálias em definirem quem somos nós. Ela era a própria encarnação da sentença: “Ninguém nasce mulher. Torna-se mulher”. Ao fazer este momento de negação, ela termina por nos revelar que se tornar gente pelo gênero exige que façamos gênero ao longo de nossas existências. Não existe um ato único que funda o gênero. Não possuímos uma “essência” interior que é revelada nos atos generificados. Ao contrário, o gênero só existe na prática e esta regra iguala todas as expressões de gênero, as inteligíveis e as desumanizadas. Tornar-se homem e tornar-se mulher são atos que precisam ser repetidos diariamente. A diferença entre eles (inteligível e a desumanizada) é o poder que a primeira tem em fazer calar aquelas outras expressões que explicitam o caráter performático de todos os gêneros.
Na cena do banheiro, o poder estava na voz do fiscal. No entanto, ao afirmar que ela não era uma mulher, o que ele fez foi nos permitir reinstaurar a pergunta: o que é uma mulher? John Austin (Quando dizer é fazer: palavras e ação) dirá que tem um grupo de palavras que não descrevem a realidade: a produz. São os atos performativos da fala. Talvez seja necessário problematizar a noção de fala e de ação do nosso filósofo da linguagem. Quem pode anunciar esses atos? Quem pode criar realidades? Apenas aqueles que têm poder. “Você não é uma mulher!” é um ato que cita (reproduz) uma verdade para os gêneros e, ao mesmo tempo, o recria (uma produção sem origem) em um contexto singular: o banheiro de uma escola. E Lara está lá, nos dizendo, mais uma vez, que o gênero é um lugar de poder, portanto, aberto às disputas.
Depois de ter sido obrigada a usar o banheiro para deficiente, Lara retornou para sua cadeira. Ela ainda seria submetida ao constrangimento de, na hora de assinar a lista, escutar o seu nome de batismo pronunciado em voz alta e ser atravessada pelos olhares cortantes de todos que estavam na sala. Uma das fiscais lhe disse: “Ah, meu filho, você não pode assinar nome fictício aqui”.
No Brasil, não existe uma legislação que assegure o direito de se mudar legalmente de gênero. Diante deste vácuo legal, o Executivo tem adotado o “nome social” para garantir que o respeito ao direito das pessoas de usarem outros nomes pessoais – diferentes dos que estão informados nos seus documentos oficiais. Tal gambiarra legal (made in Brasil) poderia permitir, pelo menos, a paz necessária para Lara fazer uma prova com maior tranquilidade psíquica. Contudo, entre a norma legal e Lara havia os fiscais de gênero.
A força das normas de gênero está em sua capilaridade. Múltiplos agentes sociais, localizados em instituições, atuam para protegê-la. E talvez seja na capilaridade que se tenha que atuar para desfazer os gêneros, liberando as masculinidades e feminilidades da prisão naturalizante e assegurando-lhes o que a vida já faz: sua fluidez das expressões de gênero. Daí a importância de acontecimentos como o da prova do ENEM, que levou os estudantes como João a se questionar: quem é esta Simone de Beauvoir? O que é “tornar-se”?