Sobre o artigo: “O avesso da tristeza: luta e resistência em João Nery” (Berenice Bento)
Eu
queria dar um presente ao João W Nery como reconhecimento por sua importância na
luta pelos direitos humanos. Escrevi-lhe, então, um artigo: “O
avesso da tristeza: luta e resistência em João Nery” (in: Estudos sobre gênero:
identidades, discurso e educação – homenagem a João W. Nery. Organizador por
Dánie Marcelo de Jesus, Divanize Carbonieri e Cláudia Maria Ceneviva Nigro).
Compartilho
com vocês a recepção que meu presente-artigo teve em João Nery.
Muito
obrigada, João.
Durante grande parte da minha vida quis saber quem
eu era. Uma curiosidade de conhecer que imagem fazia para os outros. Ainda na
faculdade, sentado no bar com os colegas propus o jogo “e se eu fosse”, um
livro, um carro, um bicho, etc. Fiz tb com os amigos na minha casa. Das
respostas que me lembro fui um jipe, um macaco...uma coisa geralmente sem
sofisticação, forte, ágil, observadora e quando me associavam a algo suave,
sempre me surpreendia. Menos com mamãe, que sempre dizia que eu era dos filhos,
o mais doce e emotivo. Lendo seu artigo associei-o logo à brincadeira. Mas
desta vez foi diferente. Não tinha proposto nada e tudo que li falava do meu
presente e do passado usando citações de pessoas que eu, desde a adolescência
admirava, como: Artaud, Espinoza, Nietzsche e Deleuze, embora nunca tenha
conseguido ler todo o Anti-Édipo, (mas adorava o título, desde que descobri com
Malinowski, que o complexo de Édipo não era universal). Comprei os Mil Platôs e
só faltava na livraria o vol.3. Artaud, descobri aos 30 anos através de
conversas com uma amiga, mas nunca li. Espinoza era a paixão das pessoas que
admirava como meu professor, o filósofo Luiz Alfredo Garcia Roza, como Nise da
Silveira. Dele li muitos pensamentos e sua biografia, mas desconhecia a
expressão conatus. Aos 20 anos anotei
num papel as principais definições do “Assim falava Zaratustra”, mas não li a
Genealogia da Moral. E agora, mais do que nunca, quero ler todos. Depois de
formado, admirava um psicólogo da Gestalt (que trabalha tb com o corpo, coisa
que a psicanálise nunca fez) F. Pearls, que além de valorizar o presente, dizia
uma frase que me marcou: “Culpa é ressentimento projetado”. Daí a minha recusa
à escravidão do ressentimento.
Portanto, ler seu artigo envolvendo meu presente e
um passado (que não estava no livro) foi uma revelação profunda. Sobretudo,
vindo de você, a minha “mestra”, eu que sempre me recusei a ter ídolos ou
ideologias que pudessem me cegar para outros aspectos. Quando a conheci no Trans
day, achei-a séria demais, nada simpática, mas reconheci que foi a palestra
mais consistente que ouvi naquele evento. E, sabendo do Tirésias, fiz questão
de presenteá-la com meu livro. Não imaginava que, logo depois, seria convidado
para ir falar na sua universidade e ser convidado a conhecer sua casa, olhando
todos aqueles livros, sem saber ainda por onde retomar meus estudos sobre
sexualidade e foi você quem primeiro me orientou, me deu dicas, me ensinou. Sua
palestra para um grupo de mulheres estupefatas ao ouvir que você poderia se chamar
Bernardo, se colocando como um transhomem, achei o máximo. Nosso encontro num
bar à noite, comendo caranguejos numa cidade que nunca tinha ido. Sabia,
naquele momento, que ele seria único e não se repetiria. Foi nosso primeiro
encontro feliz.
O primeiro e melhor livro que li sobre os
dispositivos da transexualidade foi a “Reinvenção do Corpo”. Denso, humano,
despatologizador, tudo que eu já achava, mas ninguém ainda tinha escrito.
Depois disso, estivemos juntos em algumas mesas de
debates, tive sua ajuda corrigindo meus textos, nosso encontro no evento queer em sampa (onde não esqueci o
recadinho “Não pare de escrever”).
Fiquei feliz quando foi pra NY, imaginando o quão
importante era você lá, estudando no meio daquela gringalhada toda e sem falar
inglês direito, como eu. Depois a alegria de saber da sua militância
pró-palestina, tantas ideias em comum e você ainda tão jovem, que poderia ser
minha filha.
Na primeira leitura do seu texto, me emocionei tanto,
que não consegui continuar. Esperei o dia seguinte para recomeçar, agora com
uma caneta em punho, como sempre faço, quando leio o que me interessa.
Não imaginava a repercussão que deixei na UFRN. Mas
tenho consciência que ninguém sai igual de uma palestra minha.
Gostei de
saber que Antígona é o meu anjo da guarda, já que nunca tive um.
Com certeza
nunca fui escravo, a não ser de meus desejos e sei que na minha vida me tornei
pai e até avô de vários garotos. Sei que o que digo tem peso para eles e por
isso, vez por outra, posto “recadinhos”, como os de ontem: “Comunico que serão excluídos
xs transhomens que querem impor um modelo de transmasculinidade, se tornando
opressores dentro da própria comunidade trans, ofendendo quem não se hormoniza
ou usa nome feminino, etc”.
Adorei saber que sou uma impossibilidade para as
feminazis, mesmo tendo uma vagina como elas fazem tanta questão.
Seu texto é filosofia poética questionadora: “De que
serve essa alteridade que me coloniza?”/ “De que serve uma sensação se há uma
razão exterior para ela” (F. Pessoa). Só se for para o amor, onde as amarras
permitidas são bem vindas.
Não sabia ser um terceiro gênero espinosiano. Sei
que me condenei a ser livre na perspectiva sartreana, onde sempre tive que
escolher, peneirar o que era não-ser, reinventar o que o real não me enxergava
ou fornecia, crescer no que você nomeou de combate agonístico. Talvez seja a
arte da sobrevivência, inventando, criando, ousando para poder me reconhecer neste
mar de desencontros. Mas com certeza, não foi coragem.
Só desejo que meus escritos não se apaguem, possam
ser multiplicados em várias línguas e ecoem nos corações das novas gerações,
com força brutal para rasgar todas as máscaras desde o do DSM aos grilhões binormativos
para criarem um sociedade onde possam ser visíveis, tendo direito à auto-denominação, à liberdade
de expressão sexual, física e psicológica, à proteção dos direitos igualitários
e de se orgulharem de existirem como são.
Difícil mesmo é continuar a exercer a humildade
depois de um artigo deste."
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