Quem são os 'disfóricos de gênero'? A relação entre cultura e saúde mental no DSM-5


Não há nenhum indicador objetivo, quantificável, repetível para se definir os 'disfóricos de gênero'. São as normas sociais hegemônicas definidoras do que é apropriado às meninas e aos meninos que guiam o olhar do psiquiatra
“A formação da identidade de gênero tem uma base biológica”. Você já deve ter escutado esta frase. Qual base biológica? Em que lugar dos nossos corpos encontra-se a explicação para os múltiplos arranjos identitários das nossas masculinidades e feminilidades? É verdade que as pesquisas aplicadas são muitas. A lista é grande. Aí vão algumas: Já tentaram causas hormonais (Bosinski et al., 1997; Mueller,  et al., 2008), neuro-anatômicas (Luders et al., 2009; Garcia-Falgueras et al., 2008), preferência pela utilização da mão esquerda entre as pessoas trans (Green & Young, 2001), herança genética (Bailey et al., 2000),  peso inferior em relação aos irmãos não trans (Blanchard at al., 2002), pesquisa nos cariótipos  (Inoubli et al., 2011), elevadas taxas de síndrome dos ovários policísticos entre os homens trans (Balen et al., 1993), diferenciação sexual do cérebro (Blanchard, 2001),  a influência dos hormônios sexuais na diferenciação sexual do cérebro dos mamíferos na fase pré-natal (Baba et al., 2007). E, sem querer provocar nenhum surto de riso no/na leitor/leitora, há pesquisas que tentam fazer uma relação entre as dimensões das digitais e as identidades de gênero (Green, & Young, 2001; Elizabeth & Green, 1984). Para o desespero dos crentes na base biológica, ao final, todas não chegam a um resultado satisfatório.
Há muitos saberes que acreditam numa “base biológica”. Ao longo das próximas semanas, vou me ater ao DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental), publicação da Associação Norte-Americana de Psiquiatras (APA), no seu capítulo “Disforia de Gênero”. O DSM-5 é um dos textos mais importantes na defesa de uma base biológica para as múltiplas identidades de gênero e orienta psiquiatras que têm o poder de produzir pareceres sobre as demandas das pessoas trans e travestis tanto para a realização das cirurgias de transgenitalização quanto em processo jurídicos de mudança dos documentos.
A quinta edição do DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental), publicação da Associação de Norte-Americana de Psiquiatria (APA), aprofunda (supostamente) a discussão sobre a importância de se pensar a relação entre cultura e saúde mental. O capítulo “Esboço de Formulação Cultural” apresenta um quadro de referência para se avaliar esta relação. Uma primeira leitura do capítulo pode sugerir que há um avanço considerável na concepção da Força Tarefa encarregada da revisão do DSM-5 e, mais especificamente, no Grupo de Trabalho (GT) que se dedicou à revisão do capítulo sobre Transtornos de Identidade de Gênero (agora nomeado Disforia de Gênero).
Para problematizar este suposto avanço, gostaria de sugerir uma cena: “uma mulher que vive em Manhattan vai consultar-se com psiquiatra nova-iorquino. Ela nasceu em Samoa. Quando a mulher começa a falar, sua voz grave, suas mãos grandes, produzirá certamente dúvidas ao psiquiatra em relação à sua identidade de gênero. Na comunidade de onde ela veio, sua identidade de gênero é respeitada. Quando ela mostra sua identificação, o psiquiatra não terá mais dúvidas: está diante de uma... ‘disfórica de gênero’. Mas ela está no consultório porque gostaria de ajuda para superar um sofrimento que não se relaciona à sua identidade de gênero”.
Pergunto: Este psiquiatra teria condições culturais de atendê-la e ajudá-la sem fazer qualquer comentário sobre as suas vivências de gênero? O que estou tentando sugerir é uma inversão. Como o DSM-5 é um retrato (talvez borrado, desfocado) da sociedade estadunidense, eu diria que o olhar do psiquiatra não resistirá em saber mais sobre a vivência de gênero da mulher e o dito sofrimento que a trouxe ali.
Possivelmente, ela terá o diagnóstico de disforia de gênero, combinada com outros "transtornos mentais". O olhar do especialista é construído para patologizar as experiências que não se enquadram dentro do que é considerado culturalmente aceitável para os gêneros. O que, inicialmente, parecia ser um movimento do psiquiatra para a paciente, logo se mostrará o sentido inverso. Será a paciente que terá que se submeter às categorias de conhecimento e reconhecimento da assinatura cultural do psiquiatra. Em seu contexto cultural, ela certamente não viveria este tipo de violência epistemológica. Se estamos nos movendo no âmbito da diversidade cultural, na negociação de conceitos de sofrimentos, o primeiro passo seria estabelecer uma relação simétrica de escuta.
Franziska Neumeister / Flickr CC

Manifestante na Trans* March 2014 em Berlim, na Alemanha
Saindo dessa cena na qual o psiquiatra já está operando seu olhar com fundamento no texto do DSM-5, vamos nos mover, agora, no processo que o antecede. Como foi a construção deste capítulo? Quais foram os saberes acionados pelo GT Disforia de Gênero? Sabemos que a tradição em lidar com as questões culturais cabe às ciências humanas. Quantos cientistas sociais, por exemplo, compuseram este GT? Nenhum. Quantas pessoas trans? Nenhuma. Quais as nacionalidades dos membros do GT? Será que um minúsculo grupo de pesquisadores de Estados Unidos, Canadá, Holanda e Reino Unido pode esgotar as possibilidades explicativas para os "disfóricos de gênero" e os "não disfóricos de gênero"?
O Grupo de Estudos Questões Transculturais e de Gênero, que deu suporte aos debates sobre gênero ao longo de todo processo de revisão, era formado por 13 membros, sendo que 11 eram de centros de pesquisa estadunidense e dois eram de outras instituições canadenses. Apenas um dos pesquisadores tem algum vínculo com a área de humanas (Spiro M. Manson, antropólogo, médico e professor de psiquiatria). A hegemonia é das áreas de psiquiatria, psicologia e medicina.  Ao ler o DSM-5, descobrimos que os pesquisadores das humanas são completamente dispensáveis, mesmo que o debate envolva cultura e, mais especificamente, gênero. O mesmo se pode afirmar em relação aos saberes produzidos pelos ativismos em torno da diversidade de gênero.
Em um texto de 10 páginas (Capítulo Disforia de Gênero – DSM-5), 12 pesquisadores, distribuídos em cinco países, utilizando apenas o inglês como idioma, apoiados por um Grupo de Estudos com 13 membros, todos vinculados à psiquiatria de apenas dois países (Estados Unidos e Canadá), querem nos fazer acreditar que ali se encontra a verdade sobre os “disfóricos de gênero”. Esta é uma armadilha que os feminismos precisam desmontar: ao identificar os disfóricos de gênero, o DSM-5 está utilizando como parâmetros de medição o que é considerado socialmente aceito para meninos e meninas. Foi assim no DSM-III, DSM-III-TR, DSM-IV, DSM-IV-TR e se consolidou no DSM-5. Como identificar uma criança “disfórica de gênero”? Não há nenhum indicador objetivo, quantificável, repetível para se definir os "disfóricos de gênero". São as normas sociais hegemônicas definidoras do que é apropriado às meninas e aos meninos que guiam o olhar do psiquiatra.
A resposta óbvia, que poderia ser direcionada à minha ponderação da ausência da pluralidade no DSM-5 (de nacionalidades, línguas, identidades, costumes), é que não teria por que sê-lo, pois se trata de um Manual de uma associação profissional nacional. Este argumento, porém, desaparece se perguntarmos se o alcance das afirmações nele contidas são exclusivamente válidas para o contexto dos EUA. Neste momento, outra certeza poderá ser afirmada: não, ele tem validade para além das fronteiras nacionais porque é passível de verificabilidade. No momento de se definir quem tem o poder de fala (os psiquiatras estadunidenses), ele é um texto local. Quando se trata de pensar o alcance dos achados, ele se transforma, quase em um passe de mágica, em um texto universal.
 Se a escuta do Outro e da diversidade cultural foi assumida como importante para a construção de todas as categorias diagnósticas (principalmente nas questões de gênero), por que, na bibliografia citada no principal artigo produzido pelo GT Disforia de Gênero – “Memo outlining evidence for change for gender identity disorder in the DSM-5. Archives of Sexual Behavior” (assinado pelo presidente do GT, Kenneth J. Zucker, e outros pesquisadores) – de um total de 125 obras citadas (entre artigos e livros), apenas quatro se referem à diversidade cultural do gênero? A única obra citada escrita por uma pessoa trans é “Gender outlaw: On men and the rest of us” [“Gênero fora da lei: Sobre homens e o resto de nós”, em tradução livre], de Kate Bornstein.
Das 125 obras citadas neste artigo, 59 são de apenas três cientistas e 25 obras são de um único autor, o presidente do Grupo de Trabalho, Kenneth L. Zucker! Ou seja, parece que o artigo e o próprio capítulo Disforia de Gênero estão mais para uma ação entre amigos do que para uma “produção científica”. O nível de endogamia atinge índices insuperáveis. É como se o Outro não tivesse nada de importante que merecesse ser levado em consideração. Neste caso, o silenciamento não se limita exclusivamente às/aos pesquisadoras/es e ativistas trans além-fronteira estadunidense, mas aos próprios sujeitos que vivem as experiências trans no contexto local. Em um ato de poder, o GT Disforia de Gênero silencia as vozes e atribui a um grupo de quatro pesquisadores a tarefa de pensar o mundo das relações de gênero.
É uma visão psiquiatrizante das identidades que continuou hegemonizando o Manual. O estudo do nível pré-textual do DSM-5 também nos revela que há um elevado nível de concentração de poder nas mãos de uns poucos “iluminados” que têm o dom, quase milagroso (tamanha a falta de qualquer base científica), de transformar uma categoria cultural, gênero, em diagnóstica. A parte referente à cultura representa o desejo de ser "politicamente correto", um exercício retórico que visa à produção de miragens acerca do caráter controlador dos corpos (no contexto estadunidense) e colonizador em relação às outras culturas. 

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